Veneno
- 20 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
Fabrício Nunes (texto)
Ímpar (imagem)

Véi, formiga. Daquelas ruivinhas, de cozinha. Primeira vez foi que eu esqueci uma cueca virada em cima da pia – café da manhã, queria comer o troço, tava coberto daquela praga, tinha mais formiga que açúcar, fervilhava das desgraças igual uma brasa. Joguei no lixo, joguei spray de barata dentro do lixo, na pia, na cozinha toda. Sumiram por um tempo. Aí elas voltam de tempos em tempos. Faz calor, certeza que voltam. Às vezes não: fazendo frio, e não aparecem as nojentas do nada? Faço faxina – bicho até parece que gosta de limpeza, meti veja, quiboa em tudo, duas horas depois, elas fazendo caminho no azulejo da parede. Saem do buraquinho da luz – já meti pasta de dente, cravo, tudo que é troço. Funciona? Porra nenhuma!
Aí comecei a comprar veneno, né? Vendedor me deu um vermelho, que é uns grãozinhos. Você bota ali perto de onde elas andam e logo junta um monte; elas vão carregando aqueles grãozinhos e levam pro ninho, diz que mata tudo. A Márcia tava lá, a gente ria, de maldade: vão morrer tudo, suas desgraçadas! Aí sumiram umas duas semanas. Depois voltaram, botei mais veneno. Pois nem quiseram saber mais do negócio! Chegavam perto, fuçavam e iam embora. A Má deu a ideia de misturar com açúcar pra enganar elas. Deu certo: as gulosas pegavam o açúcar e os grãozinhos, carregavam tudo. Sumiram mais duas semanas. Ah sim – apareceram de novo. Repeti a ideia da Má e vieram as formigas. Adivinha o que aconteceu? Elas pegavam só o açúcar, ficou só o montinho vermelho de veneno! Bicho, elas aprendem. As formiga velha contaram pras formiga nova!
Aí tentei outros venenos. Tinha veneno em gel – vem tipo numa seringa, sai uma gosma transparente que faz uma meleca danada, escorrendo pelos azulejos. Elas ficam igual uns porquinhos mamando aquele negócio, uma aura ruivinha em torno da gosma transparente. Sumiram por mais umas três semanas, daí apareceram de novo, nem ligavam pro veneno, e eu lambuzando as paredes com aquele negócio que não servia mais pra nada. Daí perguntei pra vizinho, pra porteiro, cada um com uma fórmula, nenhuma que funcionava. Foi casca de laranja, sachê de cravo, algodão molhado de pinho sol, até fumaça de pau santo eu tentei. Só faltou eu usar pedaço da roupa do Frei Miguel, trava da chuteira do Pelé, sunga do Oil Man.
Um dia eu e a Má na portaria, eu comentei com um senhorzinho sobre as formigas, o véinho começou a contar que tinha visto uma reportagem. Diz que essas formigas, quando dá em hospital, vão no lixo onde tem lá os pedaços de órgão, resto de cirurgia, essa nojeirada. Que vão nos necrotérios, e fazem a festa. E daí elas vão roendo aqueles negócios e vão carregando por aí, espalhando pedaço de morto, troço cheio de doença, e depois vão caminhar em cima da pia onde a gente faz comida, andando em cima de bolo, de pão, de bolacha, carregando pedaço de defunto. O senhorzinho, gente fina, coitado, decerto meio surdo, falando alto na portaria, “quando eu vi eu quase vomitei! Eu quase vomitei”! E a Márcia com os olhão desse tamanho.
Nisso eu tinha um veneno novo, esse o vendedor me disse que era tiro e queda. Um sprayzinho, você taca em cima de uma delas só, ela leva pra casa e mata o ninho inteiro – diz que. Ah, funcionou sim. Taquei o tal veneno mágico, sumiram por uns dias. Duas semanas, de novo. No banheiro, cara. Sei lá que pira formiga tem por banheiro – começaram a sair do interruptor, faziam caminho pelas paredes, caminhavam por tudo. Sei lá se tô com o mijo doce, se tô cagando açúcar. Mas apareceu de monte. Imagina meu susto abrindo o lixo do banheiro – as nojentas saindo de lá de monte, e depois caminhando na pia do banheiro? Na escova de cabelo, na escova de dente! – puta merda. Tive que lavar tudo, meti na água sanitária, meti álcool 70. E eu lembrando do véinho: “quase vomitei”!
Mais dois venenos depois, nem lembro quais, apareceram de volta na cozinha – e aí que ficou bizarro. As formigas fediam, cara. Tipo podre, tá ligado? Eu taquei pinho sol até dentro do buraquinho da luz, fui espalhando com cotonete. Daí elas apareceram de dentro do ralo do tanque. Quiboa nelas, pinho sol – até meio que me intoxiquei com a mistureba de produto. Lavei a roupa, estendi, a Má foi tirar – diz que tinha formiga de monte na roupa limpa, em meia, em calcinha dela. Pode isso? E um cheiro estranho, tivemos que lavar tudo de volta. A Má morrendo de nojo, eu também. Deram de aparecer também na louça limpa – agora tem que lavar tudo antes de usar. Até hoje tiro roupa da gaveta, cheiro pra ver se não tá estranho, de vez em quando jogo na máquina, só pra garantir.
Aí uma noite, a gente dormindo, eu acordo sei lá por quê – cachorro latindo, acho, logo aqui que a cachorrada é quieta. Olho pro lado, a Má dormindo, no escuro eu percebo uma coisa estranha na cara dela, eu acendo a luz, quase que morro: a cara dela coberta de formiga, fervilhava, parecia uma brasa viva de inseto, tava que uma máscara vermelha da peste. Sim, aquela gritaria, vai ela pro chuveiro, eu sem saber se tacava veneno na cara dela, se tacava fogo, ela esfregando sabão na cara, no corpo, eu tacando pijama, calcinha dela na máquina de lavar, o cheiro esquisito por tudo – carniça, véi, carniça, um nojo. Passado o susto maior, desci correndo falar com o porteiro, né, porque precisa dedetizar, benzer, sei lá. No elevador, aviso de gato sumido. Aí na portaria mais gente pra reclamar, todo mundo maluco, povo contando que tinha morrido o véinho, sei lá de quê; o senhorzinho, sozinho de tudo, diz que só acharam mais de uma semana depois: os vizinhos sentiram o cheiro, foram olhar, adivinha o quê – um monte de formiga saindo debaixo da porta do apê dele.
A Má? Não voltou mais. Eu também não voltava.
junho de 2024
Comments