SUSSURRANDO PELOS CORREDORES
- 18 de jul. de 2024
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Moara Milléo (texto) Manu Mezzomo (imagem)

– Vamo logo, Luiza, não era nem pra gente tá aqui...
– Calma, ô Zé! Deixa eu ver se não tem ninguém desse lado do muro, mesmo...
– Luiza, pelo amor de deus, pula logo pra lá. Eu tenho medo de ficar aqui na rua essa hora da manhã. Pelo menos na escola a gente tá protegido, acho.
– Cagão... sobe tu no muro logo, preu te ajudar.
Subi, raspando a barriga, as coxas, as canelas no muro afiado da Escola Municipal Santos Dumont, na madrugada do dia 9 de agosto de 2021, pensando desesperadamente no que minha mãe ia achar se me visse invadindo a escola... em plena pandemia... era preu tar em casa... dormindo... são 6h17… e eu tô na ru... BLAM. O barulho dos pés do Luiza Gabriela Medeiros da Silva batendo no concreto da quadra de esportes da escola me arrancou dos meus pensamentos desesperadores.
– Desce, Zé, não tem ninguém mesmo, vamo procurar ela, depois vamo embora.
Luiza Gabriela Medeiros da Silva, minha melhor amiga, tinha chutado a nossa bola preferida pra dentro da nossa escola na tarde anterior, aquela branca, com desenhinhos marrons e amarelos, réplica da bola da Copa de 2010, acho, tava toda ferrada, a gente não vivia um dia sem jogar aquela bola na rua... quer dizer... agora fazia um tempinho que a gente não arriscava sair... tavamos ligados dos perigos do vírus, até da escola a gente tinha sido tirado... fazia mais de um ano que a gente não entrava aqui, só aquelas merdas de aulas remotas.
Desci meio desajeitado, caí batendo o joelho no concreto, todo machucado. Ficar tanto tempo em casa tinha me deixado meio molenga... tenho dez anos e nem um muro eu consigo pular sem me estrupiar inteiro.
– Cara, pior que acho que o campinho dá pro outro lado da escola, vamo ter que dar a volta, passar pelo Corredor Do Inferno e tudo... – os alunos do colégio, há muito tempo, tinham dado esse nome para a sequência de portas “Sala dos Professores”, “Sala da Direção” e “Sala da Coordenação”, que ficavam bem entre o pátio e a quadra de esportes... era cagada... de madrugada... meio escuro ainda... passar por ali... era cagada... era dos Infernos por causa da lenda que diziam que se algum aluno passasse por ali sem estar em grupo corria o risco de ser puxado pelo braço por umas mãos cheias de unhas afiadas (diz a lenda que essas mãos era da diretora que morreu ali mesmo, depois de levar uma bolada na cabeça, muitos anos atrás)... era cagada. Luiza não tinha esse medo, já foi correndo até o corredor sem nem esperar eu retomar o fôlego do tombo-caída-com-estilo do muro...
- LUIZA, ESPERA PÔ!! – às vezes é até bom ter uma amiga corajosa que nem a Luiza... eu já tinha decretado o enterro da nossa fiel escudeira bolinha Jabulani.
Quando chegamos ao corredor, diminuí o passo... por mais que quisesse sair dali o quanto antes, era impossível passar correndo ali, de tantas vezes que escutamos aquelas vozes estridentes gritando “NÃO CORRAM NO CORREDOR!!!”, dava até saudade, vontade de passar correndo, de passar dando estrelinha, engatinhando, de deitar naquele chão... de sentir o cheiro da mereda... das vozes que animavam e deixavam viva aquela escola que, apesar de tudo, nos fazia muito feliz... que saudade. Aquela hora da manhã, naquele silêncio, naquela escuridão, era muito estranho ver nossa escola assim... dizem que vai voltar semana que vem... mas ninguém avisou nada ainda... e hoje já é quarta-fe...
– ZÉ! TÁ PARADO AÍ POR QUÊ? – apesar de gritar, Luiza na verdade sussurrava. Sussurro gritado na manhã escolar. Eu não conseguia tirar os olhos da porta da direção... parecia que vinha uma luz ali da fresta e da fechadura... teria que chegar mais perto pra ver de verdade... caminhei... passos lentos... – JOSÉ ANTÔNIO. VEM. ME AJUDA A PROCURAR.
Vasculhamos todos os cantos do pátio por alguns minutos, que, confesso, pareceram horas, eu me tremia da cabeça aos pés quando avistei no meio das florzinhas da dona Lurdes aquela esfera branca-marrom-amarela-preta-esfiapada – CARACA, LUIZA, TU ACERTOU BEM AS MARGARIDA!! – ou o que um dia foram margaridas, depois que a escola fechou nunca mais a dona Lurdes, zeladora milenar daquele colégio, que faleceu de covid-19 uns meses atrás, pôde cuidar com o esmero de antes das suas florzinhas... nem vai poder.
– PEGA, ZÉ, vambora!! Tem alguém na sala da diretora, passa correndo! CARACA...CARACA!!!! – acho, mesmo, que nunca corri tão rápido na minha vida. Acho também, que nunca escorreguei tão feio naquele corredor quando aquela porta abriu, bem quando a gente tava passando ali na frente, criando uma lufada de vento que nos derrubou um em cima do outro.
A porta da direção abriu. Tinha alguém ali dentro, mesmo. Meu deus.
Do chão, levamos alguns milésimos de segundo pra olhar pra luz que vinha do batente da porta, a primeira coisa que vi foi a Jabulani, tadinha, rolando naquela direção. Já era. Ela vai furar a Jabulaninha com aquelas unhas afiadas da lenda. Apertei com toda força o que encontrei pela frente: o calcanhar da Luiza Gabriela. E ela apertou a minha mão esquerda.
– Mas meu deus. Essas crianças tão malucas. Isso tudo é vontade de voltar pra aula? – era a professora Maristela, que acho que tava de diretora nos últimos tempos. – Acho que tá na hora de aposentar essa bola, não? – disse, chutando a guerreira Jabulani na nossa direção – Semana que vem a gente volta, tomem cuidado – completou, arrumando a máscara PFF2 sobre o nariz e a boca, como deve ser.
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