top of page
Buscar

O inquilino

  • 22 de ago. de 2024
  • 3 min de leitura

Mónica Defreitas (texto)

Nelson Smythe (imagem)


Fazia alguns anos que a casa estava fechada. Na rua sem saída era a última ao fundo, com uma velha paineira na frente. As flores de algodão forraram o chão para a chegada do novo inquilino. Ele entrou pelo portão de ferro, subiu a escadinha e chegou até a porta. A chave custou um pouco a girar, mas um pequeno tranco foi suficiente para abrir. O rangido das dobradiças seria facilmente resolvido. O corretor garantira que os reparos seriam poucos e, o melhor de tudo, o aluguel estava uma pechincha. Lá dentro o ar cheirava a mofo e havia também um leve odor de cano de esgoto, mas, estranhamente, um perfume acolhedor de flores convidou o inquilino a entrar.

Seria uma nova fase em sua vida; precisava urgentemente deixar para trás tudo que havia vivido no último ano. O problema foi quando ela começou com aquelas ideias feministas! Era um homem de bem, honrado, e em hipótese alguma ia aturar reclamações ou mimimis de uma louca. Depois veio a denúncia dos vizinhos e sua vida virou um inferno. Mas não queria pensar mais. Cansado, tirou a gravata, pendurou o paletó e deitou na cama. Dormiu rapidamente, de roupa e tudo.

Quanto tempo aquelas paredes não sentiam o calor humano, a respiração quente, barulho de passos. As sombras da noite não tardariam a chegar para que a casa pudesse acolher totalmente esse inquilino, que mal conseguia distinguir entre o perfume e o mau cheiro, entre ser um monstro e ser um homem.

Ele acordou já de madrugada, sobressaltado, sentindo algo caindo em seu rosto e ouvindo um barulho de bicho quando come. Esperou um pouco, atento, o ruído apenas aumentava. Assustado, levantou-se da cama e, nesse momento, um pedaço do forro de madeira despencou, caindo no travesseiro. Agarradas aos pedaços de madeira, milhares de larvas de cupim moviam-se em uma massa viva. O inquilino deu um passo e sentiu seus pés molhados. Sem entender, correu em direção à janela. Nesse trajeto, o chão sob seus pés cedeu e ele se viu quase sendo levado por um grande e caudaloso rio que passava embaixo da casa. Agarrando-se onde podia tentou sair do quarto quando, sem entender, percebeu que a casa tremia e, aos poucos, afundava. Nas paredes apareciam enormes rachadura por onde entravam ramos espinhosos da paineira. O ruído agora era ensurdecedor. Uma barata passou voando para junto de uma multidão de grandes baratas lustrosas. Próximo delas, ouvia-se guinchos agudos; ele olhou e conseguiu enxergar um movimento na água e alguns rabinhos compridos. Precisava sair. Onde estaria o paletó?

A casa estava em ruínas e só o que ele queria era sair daquele lugar. Tentava se agarrar em qualquer coisa e seus braços e pernas se debatiam como um inseto gigante. Percebeu que pelas frestas e buracos da estrutura da casa entrava uma lama densa, quente e que aos poucos ocupava o quarto, levando os sapatos que ele havia engraxado no dia anterior. Tentou pedir socorro, mas o máximo que conseguiu foi um urro engasgado e desumano. Lágrimas, sangue, suor e todos os fluidos do pavor se misturavam com a lama. Seu corpo deslisava para uma espécie de garganta profunda e ruidosa e suas vãs tentativas de gritar eram abafadas pela sensação monstruosa de estar sendo engolido. Sentiu novamente um cheiro indecifrável de flores, e nesse momento chegou a gostar do contato da lama no seu corpo, como uma saliva lasciva. Olhou para cima e, pelos buracos do que restava do telhado, ainda viu o céu salpicado de estrelas por entre os galhos da paineira. Uma rajada de vento trouxe algumas folhas secas, galhos e o canto de algum pássaro da noite.

Aos poucos a suave luminosidade da manhã começou a surgir no horizonte. Silêncio. Nada se movia, nada voava, nem água, nem vento. No fim da rua sem saída via-se apenas as ruínas de uma antiga casa onde cresciam flores perfumadas. Segundo consta, as crianças encontraram, em suas andanças perto da paineira velha, um paletó em perfeito estado. Na calçada em frente ao portão de ferro, flores de algodão iluminadas pelo sol balançavam ao sabor do vento.



 
 
 

Comments


  • Facebook
  • Twitter
  • LinkedIn

©2021 por O Baile. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page