O dia
- 8 de ago. de 2024
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Vilma Aguiar (texto e imagem)
O som estridente do despertador o retirou de um sonho estranho.
Às cinco, a cidade ainda estava silenciosa.
Sem acender a luz, se levantou.
Todo dia o mesmo dia.
Tateando, encontra a roupa na cadeira, à esquerda.
A calça anda frouxa. Era preciso apertá-la com um cinto. A camisa coberta pelo casaco inglês. Uma boa compra no brechó do centro. Os sapatos, um número maior. Algodão nas pontas. Pés pequenos para homem, sempre um vexame.
Procura o banheiro, atravessando a sala.
A urina sai num jato, ele ainda com os olhos apenas entreabertos. Num balé bêbado se vira para o lavatório encardido. Água gelada, é julho. Lava as mãos e o rosto, e aí desperta completamente.
Na penumbra, vê no espelho seus fartos cabelos negros. Um orgulho.
Mais um dia dos mesmos dias.
Sente Maria quase a seu lado, não a ouviu levantando-se.
- Não quero café, Maria. Meu estômago dói.
Documentos no bolso, chave na mão.
- Até mais, Maria. Melhor não me esperar, posso chegar tarde.
Nem um beijo.
A porta range e bate. São cinco e dez da manhã.
*
O ônibus está atrasado, e ele fica impaciente. Fumar a estas horas, o que fazer?
No horizonte, nuvens negras.
Esqueceu o guarda-chuva. Será que dá tempo de voltar e pegá-lo? Não, o ônibus chega.
Nem está lotado. Noventa minutos. Se estivesse sentado, dormiria. Deu o banco para a velhinha. Parecia sua avó. O mesmo olhar embaçado pela catarata.
- Não quero ficar velho, diz em voz alta.
Ninguém ouviu. Ou ouviu e fingiu.
Toca a campainha
. Na hora de descer, a chuva já é torrencial. E o estômago doía.
*
Está atrasado. Nos portões, do outro lado da rua, não há ninguém. Maldito ônibus. Maldita chuva. Melhor correr.
Buzina e freada.
- Filho da puta.
- Filho da puta.
Os gritos se perdem no barulho que já tomou a cidade.
O dia dos tantos dias começou mal.
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