O Berço da Humanidade
- 13 de set. de 2024
- 3 min de leitura
Daniel Montoya (texto)
Guadalupe Presas (imagem)

A casa pintada com um verde suave, turquesa, o rio com muitas pedras e o cheiro de eucalipto. É mais menos como lembro da casa na rua Manchego Munhoz, em Huancayo, cidade a 3000 e poucos metros de altitude no meio dos Andes peruanos. Eu não sabia que o rio tinha nome, nem conhecia o conceito de vale. O rio do outro lado da rua se chama Shullcas e deságua no Mantaro. Este, por sua vez, corre inicialmente para o sul, vai se juntando a outros e corrige a rota em direção nordeste, para integrar a bacia amazônica. Jogando pedras no rio, com cinco anos de idade, não poderia imaginar onde deságua. E, mesmo hoje, não imaginava o que havia ali antes dele.
Um vislumbre do que ali existiu apareceu pra mim quando ganhei, de um casal de amigos que esteve no Peru recentemente (obrigado Tarso e Rô), o livro "Mitos, leyendas y cuentos peruanos", editado por José Maria Arguedas e Francisco Izquierdo Ríos. O livro foi publicado pela primeira vez em 1947, 77 anos antes de chegar na minha mão. Arguedas e Izquierdo, com a ajuda de muitos estudantes, recolheram contos e mitologias de todas as regiões do Peru –costa, selva, montanha. Obviamente, procurei logo de início as histórias que poderiam se referir à região da minha família e nisso acabei por descobrir que toda a humanidade teve origem por ali. Bom, pelo menos é o que conta a mitologia do povo Huanca (ou Wanka). O que segue abaixo é a tradução desse mito da origem da humanidade, segundo a tradição milenar dos que habitaram a região do vale do Mantaro, conforme a publicação de Arguedas e Izquierdo.
“A aparição dos seres humanos sobre a Terra (Junín)
Em tempos remotos, o atual vale do Mantaro (também chamado vale de Jauja), estava coberto pelas águas de um grande lago, em cujo centro havia uma rocha chamada Wanka. A rocha era local de repouso de Amaru, temível monstro que tinha cabeça de lhama, corpo de sapo com duas pequenas asas e cauda de serpente. Passado um tempo, Tulunmaya (a divindade arco-íris) gerou no lago outro Amaru, de cor mais escura, para ser companheiro do primeiro. O novo nunca chegou a atingir o tamanho do outro que, por sua maturidade, havia adquirido uma cor esbranquiçada. Os dois monstros disputavam a supremacia do lago, e a rocha Wanka, apesar das grandes dimensões, não era suficiente para dar repouso aos dois juntos. Em uma das frequentes batalhas, nas quais se elevavam violentamente a grandes alturas no céu sobre trombas d’água que agitavam o lago, o Amaru grande perdeu um importante pedaço de sua cauda de serpente ao atacar furiosamente o menor.
Irritado com as disputas, o deus Tikse descarregou sobre eles uma tempestade, e ambos foram atingidos e dissolvidos por raios, caindo sobre o lago com a chuva diluvial. O volume de água elevou-se até romper as bordas do lago e esvaziar-se para o sul.
Quando assim se formou o vale do Mantaro, saíram do Warina ou Wari-puqio (que provêm das palavras wari, ‘esconderijo inefável que guarda algo ou um ser sagrado’; e puquio, ‘manancial’) os dois primeiros seres humanos, chamados Mama e Taita (mãe e pai), que até então haviam permanecido muito tempo sob a terra por medo dos Amarus. Os descendentes deste casal construíram, mais tarde, o templo de Wariwilka, cujas ruínas ainda existem.
Hoje, é crença geral entre os Wankas que Amaru é a serpente caída, que se escondeu em alguma cova e cresceu até ficar imensa. Amaru se aproveita dos ventos que se formam durante as tempestades e tenta escalar aos céus, mas é destroçado pelos raios na tempestade. A cor da figura de Amaru formada nas nuvens, seja branca ou preta, é presságio de um ano de bonança ou maldição.”
Dividi esta história com meu pai e perguntei se fomos visitar as ruínas de Wariwilka. Ele negou, mas lembrou do sítio arqueológico, lembrou da visita que fez quando ainda estava no que aqui chamamos ensino fundamental. Pensei que Huancayo, no vale do Mantaro, provavelmente não é o berço da humanidade, mas é um pouco o meu.
Comentarios