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  • 25 de jul. de 2024
  • 4 min de leitura

Fabricio Vaz Nunes (texto)

Ímpar (imagem)



Claro que eu sei quem você é: você passa, em suas caminhadas, aqui na frente, dia sim, dia não. Geralmente: nos dias de chuva você nunca vem. Eu entendo. Às vezes fica alguns dias sem aparecer, até uma semana, às vezes até mais e eu fico meio chateada. Mas você sempre volta: quando te vejo chegando, com seus passos rápidos, a expressão às vezes concentrada, às vezes com o rosto mais relaxado, olhando as árvores, as flores nos jardins, sempre fico feliz. Você sempre volta, e sempre olha para mim.

            Eu sei bem porque você caminha, sempre com uma roupa meio velha, com seus passos determinados: você não se preocupa com a sua aparência quando sai caminhar, e eu admiro isso. Você não sabe, mas eu já te conheço faz tempo: sei que você enfrentou um rompimento, sei que sofreu injustiças horríveis, sei que a sombra do luto anda junto com a sua sombra. Sei que teve crises de pânico, que toma antidepressivo. Caminhar foi a solução para você. Cada um tem sua solução – quando tem. Acho bonito que você conseguiu enfrentar tudo isso, caminhando como se fugisse de todos os problemas, andando para longe deles, sem olhar para trás. Entendo que você caminha atrás de endorfinas, de respiração, de ar livre – de redenção. Você não sabe, mas eu sei o que você sonhou na noite anterior de cada dia que aparece aqui na frente. Você não sabe, mas eu sei o seu nome.

            Sei que você olha para mim com um pouco de receio – mas principalmente com curiosidade. Sei que já não sou a mesma, e que meu jardim já não é um jardim, mas uma criação desordenada de mato, em que vivem joaninhas, lagartas e borboletas. Eu gosto assim: é cheio de vida. Eu também sou cheia de vida, embora as pessoas não entendam direito o tipo de vida que vive em mim. Sou cheia de memórias que são vivas, presenças que respiram o tempo e que caminham pelos quartos, como você caminha por quadras e quadras a fio. Você ia gostar delas: elas vagam, determinadas, como você.

            Às vezes você passa e me vê, e me olha nos olhos: sei que meus olhos estão embaçados, mas saiba que eu sempre retribuo o seu olhar com todo o carinho do mundo. A chuva, a poeira e o tempo deixaram meus olhos desse jeito, mas isso não me impede de vigiar atentamente tudo o que passa pela minha frente. Às vezes, pessoas que eu não convidei querem vir até mim: eu as observo com um olhar severo e ameaçador, e elas desistem. Quando passam crianças das quais não gosto, brinco de assustá-las só com o meu olhar: elas gritam e saem correndo, é engraçado. Dos animais eu sempre gosto: alguns vizinhos passeiam com seus cães, e eu os chamo com meu olhar, mas nem sempre os donos, egoístas, deixam que eles se aproximem.

            Você é uma das pessoas que eu vejo por aqui de quem eu mais gosto. Eu quero que você venha até mim: já chamei tanta gente, e tenho várias ideias para que você venha! Às vezes uso um gato: as pessoas gostam de gatos, e para mim é fácil conseguir que os gatos venham até mim. Mesmo rebeldes como são, há vários deles que me obedecem, fazem o que quero, trazendo as pessoas para perto de mim. Também é fácil evocar a sua presença elétrica e fugidia: com algum esforço, consigo obter um miado choroso, que chama a atenção de todos aqueles que gostam desses bichinhos suaves e macios, e que, aparentemente, têm um bom coração. As pessoas são muito movidas pelo desejo de salvar um gatinho: é uma coisa que me comove, e me faz gostar mais ainda daqueles que convido.

            Às vezes uso outro ardil: um choro de criança, de bebê. É um som mais difícil de evocar, mas tem resultados maravilhosos, dramáticos. Para isso, tenho um segredo: uso as vidas que vivem em mim, suas memórias, seus sentimentos. Fecho os olhos com força – quem olha de fora, se prestar atenção, pode ver como eles se escurecem – e invoco, do meu interior, lembranças doces e dolorosas. Às vezes demora um pouco, mas elas sempre vêm. Faço com que elas atravessem o jardim e cheguem à rua, até as pessoas de quem gosto e que quero junto de mim. E elas sempre vêm, e quando vêm, ficam comigo.

            Elas vêm para dentro de mim, para habitar o meu interior, com seus sonhos, suas tristezas, suas presenças de sombra e caminhada. Em cada quarto meu há uma história comovente: em um deles, um casal que terminou a vida unido como um só ser, em um sacrifício de amor e desapego. Em outro, um jovem que se envenenou por amor, belo e tolo na sua paixão adolescente. Na cozinha, uma mãe que se foi junto com suas duas crianças, na mais linda e gloriosa vingança contra um marido mau e infiel. Também há aqueles que se tornaram parte de mim por ódio, por descuido, por um destino qualquer: todos são meus, são minhas vidas: minhas almas. E eu sei, sei que você também virá, com amor e maravilha, para dentro de mim. Porque você ainda não sabe, mas eu sou, eu sempre fui, a sua casa, o seu lar, o seu descanso eterno.

 


Junho de 2024

 

 
 
 

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