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Coletânea de Crônicas Acidentais

  • Foto do escritor: Vilma Aguiar
    Vilma Aguiar
  • 11 de nov. de 2024
  • 4 min de leitura

Moara Milléo (texto)

Manu Mezzomo (imagem)

 

2006

            Na primeira semana de aula de sua vida, Menina Moleca decidiu aproveitar todo aquele espaço escalando a árvore mais alta da escola. Muito convicta das suas decisões, no auge dos seus quatro anos, enfrentou os galhos pegajosos, molhados pela chuva que caía há dias, mas que justamente naquele recreio dava trégua. Suas mãozinhas muito pequenas agarravam toda aquela quantidade de cascas, de folhas, de galhos grossos e finos. Benditos galhos finos. Quando viu, estava estatelada no chão de terra úmida, via apenas algumas cabeças, que abrigavam olhos muito esbugalhados. Soltou uma gargalhada, mas, ai, como doía seu ombro.

            No colo de alguém, parou na enfermaria.

            Pela primeira vez sentiu as mãos geladas da enfermeira.

            Surgia a primeira cicatriz.

 

2009

            Quartas e domingos eram os melhores dias da semana. Feliz pelo time do coração que vivia anos de glória. O goleiro, o centroavante e o zagueiro provocavam Menina Moleca a arriscar passes com sua bolinha de futebol estampada de tricolor entre os pés das cadeiras da cozinha, a realizar pulos e giros que colocavam em risco a integridade dos vasos da mamãe e a improvisar carrinhos que deixavam suas canelas intermitentemente roxas.

            Decidiu que era hora de arriscar essas canelas, pés e coração no futebol do recreio. Terceiro ano vs. Segundo. Em casa, jogava de goleira, mas os donos da bola proibiam menina de ir no gol. E no ataque. E no meio de campo. Arranjou uma vaguinha na zaga, afinal os carrinhos eram sua especialidade. Foi em um desses, diretamente na bola que era conduzida pela guria que tinha conquistado o ataque do terceiro ano bê, por ser a maior craque que a escola já tinha visto, bem ali, naquela quadra de cimento, que abriu um corte de mais ou menos um palmo no meio da canela, afirma até hoje. Levantou, comemorou a entrada que impediu o gol que sagraria a vitória dos adversários. Depois, caiu no cimento e gargalhou.

            Levaram-a, no colo, para a enfermaria.

            Mais uma vez sentia as mãos geladas da enfermeira.

            Era a segunda cicatriz.

 

2013

            Para as meninas do fundamental II só havia campeonato de vôlei e peteca. Era o que as meninas dessa idade podiam jogar, diziam. Menina Moleca até que gostava, e se divertia. Quiçá até se encaixava ali. Posicionou-se pra receber com uma machete o corte da guria mais alta e com as pernas mais compridas e com os braços mais fortes e com o cabelo mais cheiroso e com o sorriso mais brilhante do sétimo ano. Observações demais. Cálculo errado. Em milésimos de segundo estava, de novo, no chão de cimento, com um líquido quente escorrendo pela bochecha e com dois ardores incomparáveis em seu corpo: um, no centro do rosto, outro, no centro do peito.

            Levaram-a, pela mão, para a enfermaria. Uma mão que a segurava de um jeito nunca antes experimentado, e que acompanhava braços bastante específicos.

            Pela terceira vez sentia as mãos geladas da enfermeira, muito diferentes daquela que segurava há pouco.

            Era a terceira cicatriz.

 

 

2017

Basquete feminino foi incluído no interclasses. Primeiro A vs. Segundo B. Sua altura não servia muito para esse esporte, nunca acertou uma cesta, mas adorava driblar as outras meninas. E isso bastava.

A guria mais alta e com as pernas mais compridas e com os braços mais fortes e com o cabelo mais cheiroso e com o sorriso mais brilhante continuava ali. E jogaria, de novo, contra ela. Em um dos seus dribles mais calculados, com aquela bola muito laranja, tropeçou naquelas pernas muito hipnotizantes e acabou com os joelhos fincados no cimento.

Levaram-a, apoiada pelo ombro, sustentada por aqueles braços, para a enfermaria.

Sentia as mãos, que pareciam cada vez mais geladas, da enfermeira.

A quarta cicatriz.

 

2018

            A pressão das adolescentes funcionou. Abriram o futebol feminino interclasses.

Menina Moleca jogaria partida do título na zaga, já preparava suas entradas calculadas e dribles na ponta da área, para bloquear a atacante muito alta, com as pernas muito rápidas.

2 minutos para o apito final. O jogo: empatado.

Menina Moleca se posicionou na área, com o cabeceio pronto pra mandar longe a bola que vinha do escanteio, já idealizando o pênalti que bateria, como dedicaria a ela, que estaria sofrendo pela derrota.

Que erro foi perder-se nesses pensamentos. Acordou com uma lufada daquele perfume. Seus pés ainda firmes no chão. Não dava mais tempo. A torcida explode. As pernas muito compridas, os cabelos muito cheirosos, o sorriso mais brilhante que nunca passaram por ela. As mãos que um dia a ajudaram a ir até a enfermaria, agora formavam um coração, que era respondido por outro, de outras mãos, na torcida.

Dessa vez, ninguém a levou para a enfermaria.

Pela primeira vez não sentia as mãos geladas da enfermeira, apesar de ter sentido, mais que nunca, algo muito frio.

Era a quinta cicatriz. Ou a primeira.

 
 
 

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