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Ayacucho – parte II

  • Foto do escritor: Vilma Aguiar
    Vilma Aguiar
  • 27 de nov. de 2024
  • 6 min de leitura



Daniel Montoya (texto)

Vilma Aguiar (intervenção sobre foto)


A esperança se amarra em trança

Huaynos tocando em meu pequeno apartamento. Assim ia me aclimatando para a viagem, para a festa da Virgen de La Asunción. Comprei as passagens no impulso, depois briguei no trabalho para conseguir uma semana fora. Bateu um arrependimento, mas não tinha retorno e agora ou fazia disso uma festa mesmo ou melhor ficar em casa. A música ajudou. Talvez seja verdade a conversa de memória ancestral, ou genética. Acho que ouvi essas notas em uma outra vida e se associavam à imagens de montanhas e vales que me confundiam e já não sabia se eram memórias, sonhos ou algum documentário que vi na internet. Fiz meus planos de viagem, Curitiba-Lima, Lima-Ayacucho, três dias na capital, três no interior, com um bate e volta para Cangallo, onde acontece a festa principal da Virgen.

Só nos dias anteriores ao embarque voltei a pensar seriamente no luto da minha mãe. É óbvio que pensava nela diariamente, mas era inevitável concluir que o luto nunca me pertenceu. Não enterrei avós, nem tios, nem pai, nunca soube da morte de qualquer parente, na verdade. Foi a ruptura da fuga, a quebra de todos os laços, que me construíram tão independente e fizeram do pesar da morte uma abstração. A mãe ainda ia aos velórios dos membros da Paróquia São Marcos e me levou a um ou outro, mas quando cresci isso deixou de estar na minha agenda. Agora era arrebatada, arrebentada pelo luto, o silêncio do dia a dia sem mensagens, sem refeições. Me veio uma vontade de fazer o cabelo que ela tanto gostava de usar, com tranças amarradas em um coque. Uso uma foto nossa como modelo e tento copiar. A foto já tem seu tempo. Ela mais jovem, eu com um resto de traço infantil. Olho o espelho, analiso o coque, é, está aceitável. E percebo a semelhança das nossas idades, além disso, algo mais, uma semelhança física, ou de postura. Não sei, talvez o coque conjura algo, penso.

Lima me ensinou algo valioso. Era estranho alguém puxar conversa e descobrir que eu não falava espanhol. No taxi, no hotel, nos restaurantes, era um certo escândalo uma ayacuchana que só falava português. A recepcionista do hotel – uma casa em estilo colonial em Miraflores – quis saber mais detalhes desta nativa estrangeira. Logo que cheguei elogiou meu coque, que a esta altura era meu penteado oficial. Ela se chamava Kelly, bem falante, e gostava de saber do Brasil, conhecia de ouvir falar sobre Curitiva e queria muito conhecer Foz do Iguaçu. No segundo dia, depois do café da manhã, a Kelly perguntou o motivo do meu coque. Mostrei a foto da mãe, transformada em marca-página do Vargas Llossa que eu mais carregava pra cima e pra baixo do que lia. Ela parou com olhar solene. Perguntou se eu era viúva, e quando percebi suas mãos já mexiam em minha cabeça, desfazendo o coque recém montado.

Então ela me disse, já com meu cabelo liso, caído até a metade das costas.

– Os penteados, para nós, não são vaidade. Quer dizer, não são só vaidade.

Passava as mãos no meu cabelo como um pente. Aliás, buscou um em sua gaveta no balcão da recepção. Perguntou se eu era casada, o que respondi negativamente. Então, começou a explicar, enquanto mexia em meu cabelo.

– Em geral, na sua terra, as tranças amarradas em coque são usadas pelas viúvas. Se você fosse casada, eu faria tranças amarradas com uma fita.

Sentia meu cabelo puxando levemente, as mãos ágeis trançando na recepção que virou salão de beleza. Me posicionou em uma banqueta e eu podia acompanhar o trabalho no grande espelho pendurado na parede.

– Sendo a senhorita solteira, então, acho que vou fazer duas trancinhas soltas, como fazemos na minha terra. Sou de Catacaos. Quando solteiras, usamos duas tranças, uma para frente e outra para trás. Mas poderia ser uma só. Como seu cabelo é bonito, fazendo duas toco nele um pouquinho mais.

Sorriu. Me levou mais perto do espelho enquanto terminava o laço. E concluiu:

– Trança é identidade, menina. Este trançadinho, assim, também é uma memória de sua mamãe. Pronto, já está. Mas lembre, nada é uma regra, faça como gostar mais, hoje somos mais livres.

Analisei, virei o rosto lateralmente para enxergar melhor e vi também o sorriso de Kelly. Gostei de mim mesma, agradeci, um pouco emocionada. Falamos por mais um tempo e saí curtir o que me restava de Lima. Comer bem, comer na rua, ver os pingos de ouro no museu, pensando em juntar dinheiro para ir ver ouro de verdade em Madrid.

No dia seguinte cheguei em Ayacucho, cidade em que nasci e de onde fugi. Sim, tinha alguma memória. As muitas igrejas, a praça principal. No primeiro dia foi tudo o que fiz, passear pela praça sentindo o comércio e o clima de festa. Andava feliz com as tranças, repetindo o penteado a cada dia. A mãe gostava de trançar meu cabelo. Lembrei especificamente de quando decidi cortar o cabelo um pouco mais curto, o que dificultou o trançado. Ela ficou triste, profunda e inexplicavelmente triste. Eu não entendia o que eram as tranças pra ela, a identidade resguardada de forma silenciosa, discreta, como foi. Na manhã seguinte fiz meu penteado e parti a Cangallo, conferir a festa de la Virgen.

Cangallo não é mais que um povoado, um trajeto de duas horas em direção ao sul, e quanto mais demorava a chegar mais estava certa de que tudo aquilo era um grande erro. Por que viajar sozinha a um lugar absolutamente desconhecido? Poderia estar procurando a escolinha que frequentei na primeira infância, ir em algum cartório buscar registros de família. Mas não, insisti em ver onde a festa da Virgen era mais tradicional, ver as danças Wambarkuna que pesquisei na internet, com os trajes mais corretos. E agora ali estava. Mas nada parecia fazer sentido. A vila parecia simpática, sem dúvida, e assim que cheguei na muvuca parei em uma barraquinha na feira e pedi uma chicha morada. Um refresco feito à base de um cozido de milho roxo e especiarias. Não estava tão doce quanto às que tomei em Barranco, me pareceu melhor e voltei a achar que tinha acertado na escolha da viagem. Coisa de taurina.

Enquanto pensava isso, a menina que me cobrava se batia para achar o troco, gritou por sua avó. A senhora chega mais perto, me olha e parece que está a ponto de enfartar, começa a falar coisas sem sentido, não, não é possível, o que você faz aqui? Ai deus meu, o que estou vendo aqui? A netinha sai correndo, grita mãe, mãe, a vó está tendo um ataque de novo, rapidamente fala para não me preocupar e sai em busca da mãe. Enquanto isso, a velhinha pega meus braços, me apalpa os punhos: América, é você? América! Siiim! Pega carinhosamente em minhas tranças, os olhos marejados, não posso acreditar, Merita querida, não posso acreditar. Reajo, falo, não, meu nome é Isabel. Me corrijo. Não, meu nome é Perla. E a senhora senta. Perla? Sim, claro, Perlita, minha pérola. Perla, você é igualzinha à sua mãe. Então, com muita calma, com plena consciência de que aquela senhora tem alguma condição que não conheço, falo para ela me desculpar, pois deve ser algum engano, minha mãe se chama Maria. Vejo a menina chegando com sua mãe e interpreto como uma senha para poder ir embora tranquila, me perdendo na multidão da feira.

Quando joguei fora o copo plástico vazio da chicha morada percebi a bobagem. Minha mãe tem um segundo nome, se chama Maria Cariema. Um nome que ficava escondido e só na festa da Virgen de La Asunción percebi ser um anagrama de América. As letrinhas se reordenaram bem diante de mim: Maria América. Agora eu é quem passei a ter um ataque. Parei no meio da rua, pensando se não era loucura. Olhei ao meu redor, as pessoas passando, e eu só tentando identificar o caminho que tinha feito. Andei sem saber exatamente por onde tinha estado, mas não encontrava a senhora, não encontrava a barraquinha. E pensava, sim, acontecem milagres em Cangallo, achei minha própria santa, e comecei a repetir isso alto na rua, encontrei a santa, encontrei minha santa, onde está minha santa?, até que aquela senhora, baixinha, de blusa azul e saia colorida, trombou comigo. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, olhou dentro de mim, tocou meu cabelo e repetiu uma frase que eu conhecia: la esperanza es lo último que se tranza. Uma frase que ouvi muitas vezes de minha mãe sem entender, e que agora era dita como senha, como chave de uma porta que eu nunca tinha entrado, e a senhora então pega minha mão e apenas diz, venha, criança, vamos comer um Qapchi, o meu é o melhor da região.

 
 
 

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